O tema da morte é tratado muitas vezes de forma velada, um assunto para o qual é difícil se olhar. Lidar com a finitude da nossa existência, com as imprevisibilidades da vida que podem nos levar a um fim são temas que causam um grande desconforto. Mesmo em casos esperados, onde o estado de saúde de um indivíduo está fragilizado, onde não há mais o que fazer, o fato de ter que encarar a morte nos espanta. No entanto, basta ligarmos a televisão nos telejornais para percebermos que uma considerável parte das notícias se referem a roubos, balas perdidas, assaltos que no fim culminam em homicídio.
Ao mesmo tempo que é desagradável nos depararmos com essa realidade violenta, esse é um tipo de notícia muito veiculada, porém, quando se trata de outro tipo de morte, a que ocorre por suicídio, pouco se vê sobre o assunto na mídia. Enquanto casos de homicídio são divulgados em todos os noticiários, as notícias sobre suicídio costumam aparecer com mais frequência quando é cometido por uma pessoa famosa. As taxas de suicídios são alarmantes. De acordo com as informações do Ministério da Saúde, mais de 800 mil pessoas morrem anualmente por suicídio. No Brasil, estima-se que a ocorrência é de 32 casos por dia. Uma das grandes questões acerca do tema é: falar sobre ele explicitamente ajudaria na prevenção ou no aumento dos casos? Isso mostra como há ainda um grande tabu e o quanto é preciso caminhar para que seja possível perceber a importância de se criar conscientização e estratégias de prevenção de forma cuidadosa.
Muitas reflexões são possíveis pelas diferentes abordagens psicológicas e esse texto parte do viés da psicologia junguiana e da mitologia. É possível dizer que tudo que há no mundo segue uma determinada ordem, esse é um tema arquetípico, pois sempre há uma hierarquia das coisas. Não podemos afirmar com certeza, por exemplo, como a vida surgiu no planeta Terra, mas a evolução foi ocorrendo por etapas e o homem como é hoje surgiu só muito tempo depois. Se encararmos a vida como uma dádiva que nos foi dada por algo superior, o fato de anulá-la por escolha própria torna-se uma transgressão contra essa superioridade. Essa transgressão aparece em alguns mitos, dentre eles o de Prometeu, que desacatando às ordens de Zeus, oferece o fogo, o qual deveria ser posse somente dos deuses, aos humanos. Ao agir contra a vontade de Zeus, Prometeu recebe uma punição. A atitude de Prometeu fez com que ele desobedecesse a uma ordem e agisse de forma desmedida.
Partindo dessa ideia, talvez também seja possível pensar o suicídio dessa forma. O ato de tirar a própria vida é uma forma de ir contra algo que nos foi dado, pois não fomos os responsáveis por criar a vida. Deixar de levar em consideração as ordens superiores dos deuses gera um desenlace caótico. Não é por acaso que em várias religiões, qualquer ataque contra a vida alheia ou a própria é considerado um pecado que é punido por algo ou alguém superior. Por conta disso é preciso ouvir a vontade dos deuses e conciliá-las com as nossas, transitando da desmedida para a justa medida. O suicídio representa a última solução, é quando não se vê outras perspectivas, pois estão fora do campo de possibilidades.
A psicologia junguiana trabalha com a ideia de que a vida é simbólica, ou seja, no nosso cotidiano há muito mais do que simplesmente uma vida comum. É preciso estar aberto para notar as diversas nuances que estão por trás do ordinário. No entanto, acessar esse mundo simbólico exige olhar as coisas para além do que elas apresentam concretamente e isso pode ser feito por meio de um resgate dos rituais de passagens, da análise pessoal, análise dos sonhos, imaginação ativa, dentre outras formas. Enquanto se permanece vivendo a vida de forma literal, as soluções para os problemas também se darão nesse mesmo nível. O suicídio, olhado por uma perspectiva simbólica, pode trazer novos questionamentos: o que deve ser morto dentro de mim? Será que o desejo é realmente matar a totalidade do meu ser ou matar uma parte que não serve mais para a minha vida? Conforme traz James Hillman, no livro Suicídio e Alma, a grande pergunta é: O que quer a alma ao pensar e realizar a possibilidade de suicídio? Quem é esse nosso “assassino interior”? O trabalho de prevenção é indispensável, mas também é preciso olhar para o tema de forma ampla, tentando compreender o que o símbolo do suicídio quer dizer para cada pessoa que pensa nessa possibilidade.
Jung fala sobre a importância dos ritos de passagem que marcam etapas específicas dos ciclos da vida. Atualmente, diante de uma realidade mais racional, voltada para o imediatismo das demandas da sociedade e soluções rápidas, esses ritos perderam seu significado e foram deixados de lado. Diferente da psicologia dos povos primitivos, em que os ritos de nascimento, morte, casamento, transição da infância para vida adulta eram muito comuns e havia uma grande preparação para vivenciá-los, na psicologia do homem moderno não há espaço para essas experiências simbólicas. Todo os ritos de passagem representam a morte de uma etapa e o renascimento de outra, porém, sem a possibilidade de vivê-los simbolicamente, eles encontram caminho para serem vividos literalmente. As necessidades de mudança, de renovação, sem recursos para se expressarem pela psique como um todo, passam a ser vividas no corpo. O uso de drogas, a mutilação e, em último caso, o suicídio, viram possibilidades reais para enfrentar uma dor que se tornou impossível ignorar e lidar.
Um paralelo com o mito de Eros e Psique
Um dos mitos em que o tema do suicídio aparece é o de Eros e Psique. Psique é humana e passa a se relacionar com Eros, que é um deus, com o qual estabelece alguns acordos que mais tarde são violados por ela. Com esses acordos infringidos, Psique é castigada por Afrodite, que a desafia com quatro provas. Em todas as provas, Psique pensa em se matar por achar que seria um desafio grande demais para superar, mas recebe ajuda no caminho e consegue vencer os obstáculos. A quarta e última prova é a descida ao mundo de Hades, que representa o reino da morte. Psique teme que após a descida não consiga mais retornar, sendo essa a prova que mais exige dela. Além do que deve cumprir nessa descida, Perséfone, a rainha do submundo, a recebe com um banquete, bebidas e agrados, os quais Psique precisa recusar. Depois dos vários desafios que passa no submundo, Psique retorna e tem como recompensa a conquista da imortalidade, podendo viver ao lado de Eros e dos outros deuses no Olimpo.
Assim como Psique se retrai ao perceber as provas que precisa encarar, nos casos de ideações suicidas, a pessoa se encontra na mesma situação, acreditando que não há mais o que ser feito. Por esse motivo é importante que quem esteja nessa situação saiba que pode recorrer à ajuda de um profissional e que há estratégias para serem avaliadas em conjunto nesses casos. O que aconteceria se Psique tivesse permanecido no mundo de Hades? Por mais delicioso que o banquete oferecido por Perséfone pudesse ser, permanecer ali daria um fim a possibilidade de reencontrar Eros. Ela sabia que entrar no mundo da morte era necessário para cumprir a última prova, mas era preciso retornar.
É dessa forma que a morte se faz presente em nossa vida. Em alguns momentos é preciso olhar para aquilo que causa uma dor extrema, partir para a travessia por esse mundo sombrio, mas fazer o retorno. A visita ao mundo da morte é feita de forma simbólica e o renascimento pode ocorrer a partir da compreensão das novas possibilidades, trazendo uma renovação e transformação para a vida. Algumas vezes é tentador permanecer no mundo subterrâneo e se entregar a ideia do alívio do sofrimento, como foi para Psique, mas também é preciso olhar para o lado da vida para identificar as possibilidades que ela tem a oferecer. Psique significa alma e ela inicia sua jornada em forma humana, mas ao superar os obstáculos, ascende como divindade. A jornada de Psique é a jornada da alma humana rumo à união com os deuses. Cabe a nós decidirmos de que maneira faremos esse trajeto.
Referência:
HILLMAN, James. Suicídio e alma. Petrópolis: Vozes, 2011.






